Nas últimas semanas, o Brasil acompanhou um duro embate entre o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e a imprensa. Em diversos eventos, Lula criticou a atuação dos meios de comunicação: classificou a mídia como "golpista"; disse que alguns jornais e revistas comportam-se como partidos políticos e que o país não precisa de formadores de opinião. Em uma das ocasiões, o presidente afirmou que a liberdade de imprensa é "sagrada", mas ponderou que a instituição não tem o direito de "inventar coisas o dia inteiro". A imprensa reagiu imediatamente e subiu o tom do debate. A polêmica não ficou restrita a reportagens. O assunto foi tema de editoriais, colunas e provocou manifestações das entidades de classe.
O Observatório da Imprensa exibido pela TV Brasil na terça-feira (28/9) discutiu os recentes conflitos entre a mídia e o governo Lula, com a presença do sociólogo e jornalista Venício A. de Lima e do jornalista e professor Eugênio Bucci. Venício é doutor e pós-doutor em Comunicação pela Universidade de Illinois e também pós-doutor pela Universidade de Miami; é fundador do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp), da Universidade de Brasília (UnB). Eugênio Bucci, jornalista, é professor-doutor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e colunista do jornal O Estado de S. Paulo; foi secretário editorial da Editora Abril, presidente da Radiobrás e conselheiro da Fundação Padre Anchieta, que administra a TV Cultura. Os dois convidados são colunistas do site Observatório da Imprensa e participaram pelo estúdio do Rio de Janeiro.
Em editorial, Alberto Dines sublinhou que governantes, partidos, coligações e meios de comunicação "podem e devem" ser criticados, mas não ameaçados. "Na atual onda de desvarios, esta TV Brasil foi designada na manchete de um jornalão como ‘TV do Lula’. É uma indignidade, terrível injustiça com todos os que aqui trabalham e todos os que a sintonizam. A TV Cultura nunca foi chamada de TV do Alckmin, TV do Serra ou TV do Goldman. As duas redes têm a mesma fonte de recursos – o contribuinte – e o mesmo objetivo – oferecer uma programação de qualidade comprometida com o interesse público e não com o interesse do mercado", disse. "Nosso objetivo mantém-se o mesmo: discutir a imprensa para melhorá-la, defendê-la para conferir-lhe credibilidade".
Denúncias vs. propostas
No debate ao vivo, Dines comentou que a situação é "curiosa", uma vez que as discussões durante o período que antecede as eleições deveriam concentrar-se nas propostas dos candidatos. Perguntou, então, aos participantes que conjuntura fez com que este debate pré-eleitoral fosse travado entre outros interlocutores: o presidente e a imprensa. Para Venício Lima, o fenômeno não é exclusivamente brasileiro. Em todo o mundo, a mídia passa por transformações em conseqüência do impacto da internet. "Há pessoas que acreditam que por causa disso, sobretudo os jornais, eles tendem a ser menos noticiosos e mais analíticos e, portanto, mais ideológicos", disse. O jornalista avalia que este processo se cristalizou no Brasil a partir de uma declaração da presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), que admitiu publicamente, em março, que, tendo em vista a fragilidade dos partidos de oposição, a imprensa estava fazendo, de fato, oposição ao governo.
Eugênio Bucci afirmou que o Estado precisa ser impessoal e manter o equilíbrio. Para o jornalista, é preciso destacar que dentro da "instituição" imprensa há diversos matizes e meios de comunicação de diferentes tendências políticas. "O Estado não pulsa na mesma freqüência. Se a imprensa sai da etiqueta e da elegância, o Estado não pode se permitir reagir na mesma moeda", avaliou. Bucci afirmou que o presidente Lula tem o mérito de não ter tentado um terceiro mandato, mas ponderou que as opiniões do presidente manifestadas no final da segunda gestão sobre a imprensa colocaram a mídia "como ré" no processo eleitoral. "Foram declarações destemperadas. Então, acho que temos um erro aí diferente do erro da imprensa. O Estado tem que ser impassível e o chefe de Estado tem que permanecer impassível", disse.
Dines ressaltou que os dois lados cumpriram o seu papel em relação às denúncias de corrupção envolvendo a família da ex-ministra da Casa Civil, Erenice Guerra: a imprensa noticiou e o governo puniu. E questionou o porquê de a situação ter se encaminhado para o radicalismo. Para Venício, a imprensa não praticou um bom jornalismo e avaliou que desta "temporada de escândalos" movida pela imprensa sobraram apenas uma ou duas acusações. "A nossa grande imprensa, os principais jornais e revistas semanais, praticaram ou estão praticando, no meu ponto de vista, uma espécie de jornalismo investigativo seletivo. Há vários candidatos à presidência da República, mas você investiga exaustivamente apenas um deles", criticou. Venício defendeu que os jornais declarem apoio a uma determinada candidatura, mas ressaltou que esta situação legítima não deve contaminar a cobertura política. Ele avalia que a cobertura passou a ser de tal forma homogênea que parecia ser uma só. "As posições eram as mesmas na cobertura, o enquadramento era assim", disse.
Liberdade de expressão para os dois lados
Há uma tensão crescente e natural do fim de um processo eleitoral, na opinião de Bucci. "Não importa a coloração com que as reportagens vieram a público. Nós estamos dentro do campo legítimo da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Vamos lembrar que um jornal tem o direito de ser partidário, um jornal tem o direito de declarar o seu voto ou de não declarar. Precisamos discutir a qualidade do jornalismo, mas precisamos enfatizar que [os jornais] estão dentro do campo do seu direito", afirmou. Ressaltou ainda que as declarações do presidente sobre a imprensa não ameaçam a ordem democrática, pois todos têm o direito de se manifestar, mas disse que o presidente deveria zelar pelo equilíbrio e pela serenidade do processo eleitoral. Bucci chamou a atenção para o fato de que após a "pequena avalancha" de denúncias, o governo decidiu demitir a ministra e o presidente de uma estatal porque, conforme as reportagens anteciparam, os fatos se comprovavam.
Esta "adversidade" da chamada grande mídia em relação ao governo não tem produzido os efeitos desejados pela imprensa, na avaliação de Venício Lima, e este fato gera um desconforto, sobretudo em relação ao contato com os jornalistas mais jovens. A mídia acredita que tem um poder "que não está acontecendo agora". "Eu vejo isso muito em relação a afirmações do presidente da República de que ‘nós somos a opinião pública’. Houve um colunista do Correio Braziliense que se indignou: ‘A opinião pública somos nós’. Nós quem? Ele, o jornalista. A opinião pública não é nem o presidente da República e nem os jornalistas", observou. Na opinião de Venício, existem algumas expressões e palavras, como "opinião pública" e "democracia", cujo próprio significado faz parte da disputa política. "Há uma comentarista da rede CBN que gosta muito de falar ‘nós, da opinião pública’... Não é só a formação da opinião pública, é trazer para si próprio a opinião pública, e evidentemente isto é um engano, não existe", criticou.
Na avaliação de Eugênio Bucci, "um governante tem o dever de corrigir informações erradas, para o bem do direito à informação do cidadão. Mas não se deu isto. Houve uma fala de generalização do presidente da República condenando em geral muitos jornais que se portam como partidos de oposição, nas palavras dele, e este discurso contraria as práticas do governo. Ou bem as reportagens tinham razão e o governo tomou as medidas que tomou, e ainda bem que tomou, ou bem eram mentirosas e não era necessário demitir a ministra. Este descompasso e a raiva com que ele veio a público são responsáveis de forma preponderante pelo clima de animosidade", disse. Dines ponderou que a imprensa tem sido panfletária nesta questão e que a instituição também precisa ter compostura. Bucci complementou que a falta de compostura de um veículo de comunicação não pode justificar um nível de agressão destemperado de autoridades públicas.
Dines chamou a atenção para o fato de que a mídia eletrônica, que obedece a regras eleitorais rígidas por ser uma concessão pública, está se comportando com mais lisura do que jornais e revistas, justamente aqueles que deveriam "apelar para a racionalidade". A visão de Bucci sobre esta questão é otimista. "Este aspecto com relação à chamada mídia eletrônica, principalmente a televisão no Brasil, se nós compararmos a cobertura das eleições de 1989, 1994, 1998, 2002, melhorou. Nós temos hoje algumas reportagens de qualidade e relevância", disse. Bucci ressaltou que a grande imprensa nunca liderou as massas: quem dirige as pessoas são os políticos e os partidos.
Para Venício Lima, estudioso das eleições presidenciais de 1989, a vitória de Fernando Collor pode ser atribuída ao apoio quase unânime da mídia naquele período. "Há alguma importância ou relação na formação de opinião", disse. Bucci concordou que há indícios de que houve um peso da atuação mídia no resultado, mas ponderou que mesmo com todo o apoio, o então candidato Lula quase ganhou as eleições.
Regulação do setor de mídia
Alberto Dines destacou que é preciso criar uma consciência nacional sobre a importância da discussão sobre a imprensa e que e própria mídia deve buscar mecanismos para não ser fragilizada em determinadas circunstâncias. Venício Lima, autor de estudos sobre as concessões no Brasil, avaliou o cenário nacional: "Quando estou falando em regulação, estou falando em mercado de mídia, não de conteúdo. Estamos falando de um princípio liberal fundamental que é a questão que – para que haja circulação, pluralidade, liberdade de circulação de idéias – é preciso que as empresas estejam competindo entre si". O jornalista e sociólogo destacou que a questão da propriedade cruzada de veículos de comunicação no país deve ser debatida.
Nos Estados Unidos, por exemplo, há regulação desde a criação da Federal Communications Commission (FCC), na década de 1930. "Hoje há restrições que no Brasil seriam consideradas autoritárias, absurdas, socialistas, que é você ter em um mesmo mercado o mesmo grupo, independente do tamanho do mercado, controlando mídia impressa – jornais, revistas, rádio AM, FM, TVs abertas e pagas. Isto não pode ser deste jeito", afirmou Venício. Outro tema debatido foi a atuação de ouvidores nos meios de comunicação. "Isso é um primeiro passo. É claro que não vai resolver o problema da regulação. É o mínimo. No caso da concessão do serviço público de radiodifusão, acho que aí seria uma coisa quase que obrigatória você ter uma ouvidoria para receber algum tipo de retorno das audiências", sugeriu Venício.
Fonte: Observatório da Imprensa.
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