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8 de outubro de 2010

A última coluna da psicanalista

Estado de S.Paulo finalmente publica, na edição de sexta-feira (8/10), cartas de leitores contrariados com o afastamento da psicanalista Maria Rita Kehl, que escrevia aos sábados no caderno chamado "C2+Música".

Textos sobre o assunto vinham pontuando na internet, em geral acusando o jornal de haver demitido a colunista por haver escrito um artigo no qual falava sobre eleições e a favor do atual governo.

A resposta oficial do Estadão, assinada pelo diretor de Conteúdo Ricardo Gandour, é que a colunista foi afastada num processo "natural" de substituições que vem ocorrendo no jornal. E que não se trata de censura. No entanto, o diretor do jornalão paulista deixa claro que andava contrariado, desde semanas antes, pelo fato de que Maria Rita Kehl vinha escrevendo sobre política, comportamento de eleitores e campanha eleitoral.


Há preconceito

Na justificativa publicada na sexta-feira, ao pé das cartas de leitores, o jornal diz que "o projeto original do caderno ‘C2+Música’ é ter aos sábados um espaço para a psicanálise, mas não era esse o enfoque que Maria Rita Kehl vinha dando à coluna". Ora, o jornal parece ignorar que em psicanálise os temas são quase sempre tratados indiretamente, buscando interpretações da realidade muitas vezes através de metáforas.

Na última coluna, publicada no sábado, dia 2, véspera das eleições em primeiro turno, a psicanalista tratou das correntes de mensagens na internet que procuram desqualificar os votos dos mais pobres, dizendo que são vagabundos porque, segundo esses missivistas, preferem viver do Bolsa Família do que procurar emprego.

Esse renitente preconceito, que realmente faz parte dos bordões mais conservadores das eleições desde 2006, não deveria ser considerado assunto estranho a uma psicanalista. Mas acontece que Maria Rita Kehl defende publicamente o Bolsa Família, o que deve ter desagradado a alguns próceres do Estadão.

O fato de o jornal haver publicado a última coluna, justamente essa que aborda a questão do preconceito de classes, não alivia a percepção geral de que houve, sim, um viés político a precipitar o afastamento da colunista. Principalmente porque em nenhum outro espaço o jornal se permitiu discutir o tema tratado por ela em sua derradeira colaboração: existe, de fato, esse preconceito, que viceja na internet e foi estimulado pela imprensa.


Ausência notada

É fato facilmente comprovável, principalmente pelos observadores que têm a mania de colecionar editoriais, artigos e manchetes de jornais e revistas, que a imprensa tradicional, majoritariamente, passou os últimos anos, até muito recentemente, demonizando as políticas sociais do atual governo.

O governo anterior também produziu políticas semelhantes, embora de menor alcance, quase todas idealizadas e conduzidas pela falecida ex-primeira-dama Ruth Cardoso. Este observador teve a oportunidade de assistir uma conferência de Dona Ruth na Universidade Berkeley, nos Estados Unidos, sobre seus programas sociais, que foi entusiasticamente aplaudida pela platéia de professores e estudantes americanos.

O trabalho de Ruth Cardoso não foi tratado com o mesmo preconceito. Foi simplesmente ignorado por aqui, embora aplaudido internacionalmente. Ela nunca mereceu da imprensa brasileira o devido reconhecimento. Seria o mesmo preconceito?

Foram inúmeros os editoriais, artigos e reportagens tentando desqualificar o Bolsa Família. Houve em São Paulo, nos últimos cinco anos, pelo menos três seminários técnicos sobre avaliação de resultados econômicos dos programas sociais de transferência de renda, todos organizados pelo Instituto Itaú Social, do Banco Itaú. Em todas essas ocasiões, demonstrou-se que tais programas produzem resultados econômicos consideráveis, e não apenas no Brasil, mas também em países como México, Índia e Colômbia.

Este observador compareceu a todos esses seminários. Nunca encontrou por lá nenhum diretor de jornal ou revista. Apenas em um deles, ocorrido em 2006, apareceu o editor de Economia do Estadão, que se confessou completamente alheio ao assunto.


Evidências à vista

O artigo que encerrou a carreira de Maria Rita Kehl no Estadão falava de preconceitos e de uma luta de classes dissimulada cujos fragores podem ser percebidos em correntes na internet.

Mas essa luta de classes também está presente na chamada grande imprensa, nos artigos de profissionais referendados por lustrosos títulos acadêmicos, nos quais se condena liminarmente qualquer política pública que procure resgatar a desigualdade que prejudica os brasileiros de pele escura e os programas sociais de transferência de renda.

Com tantas evidências, fica difícil justificar o afastamento de uma colunista que discorda dessa linha editorial.

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