Há cerca de 10 dias, eu conversava sobre a dinâmica do capitalismo e a destruição de forças produtivas (instrumentos, maquinário, fábricas, mão-de-obra etc.) quando o desenvolvimento destas representavam uma ameaça ao acúmulo de capital. Chegamos, assim, ao caso do grupo de 33 mineiros que ficou preso na mina de San José, no norte do Chile, há um mês. A mina pertence à mineradora San Esteban, indústria de mineração privada responsável por empregar a mão-de-obra necessária para extrair ouro e cobre para vender ao governo chileno.
Não me estenderei em descrever outros detalhes, dada a farta oferta de informações sobre o caso. Mas sugiro, sim, a leitura de ao menos algumas dessas notícias, para que se compreenda melhor este texto. Atenho-me ao modo como tais informações têm chegado aos brasileiros.
Assistindo ao noticiário e navegando por sites de notícias, imediatamente surgiram as seguintes questões, ao mesmo tempo ilustrativas e explicativas: como é possível que uma sociedade que desenvolveu tecnologia para enviar homens ao espaço, que é capaz de localizar e explorar petróleo a 7 km de profundidade, ultrapassando uma barreira de sal petrificado, que já consegue teletransportar matéria, não seja capaz de retirar 33 trabalhadores de uma mina com 700 metros de profundidade antes do final do ano? Como é possível que só depois de vários dias se tenha dado falta dos mesmos 33 trabalhadores? A mineradora realmente não sabia, ninguém apareceu por lá esses dias?
A cavalaria chegou a tempo!
A despeito de qualquer declaração tecnolóide que nos possam oferecer, absolutamente nada justifica tal acontecimento, exceto uma coisa: aqueles 33 trabalhadores, aquela força produtiva, passou a representar um entrave à acumulação de capital da mineradora San Esteban. Retirar aqueles trabalhadores de lá geraria um déficit para a San Esteban. Em casos como esse, a lógica da acumulação de capital diz: destruam as forças produtivas! A mina já havia sido condenada por não oferecer segurança e agora havia 33 malditos motivos para não se mexer mais naquele lugar.
Por que esse desenvolvimento inicial é importante? Pelo simples fato de que nenhum veículo de mídia tocou nesse ponto – diga-se de passagem, o ponto fundamental para entender o acontecimento. Nesse meio tempo, eu já havia visto notícias com infográficos, notícias, fotos dos 33 trabalhadores, declarações de familiares e do governo chileno. Comentei que era mais fácil que se fizesse daquela situação um verdadeiro reality show e, posteriormente, um filme (nos moldes dos filmes do 11 de setembro estadunidense, entre tantos outros), do que iniciar o resgate dos trabalhadores.
Alguns dias depois, o mundo explodiu em veiculação de vídeos gravados pelos mineiros – supostamente vídeos para acalentar os familiares, para que soubessem que eles ainda estavam vivos, confirmando o que eu havia comentado. O show da vida real ganhou o mundo.
A veiculação aconteceu ainda quando estavam mornas as primeiras notícias, já que o salvamento não havia sido iniciado de fato, e colocou fogo alto nas notícias, renovando o trunfo da audiência de sites, jornais, revistas e televisão. Em uníssono, todos dizem: estão todos bem! Os vilões são os donos da mineradora, que já teve seus bens bloqueados! Até o final do ano, os felizes mineiros estarão com suas famílias! Eles já não estão com depressão! Eles vão ganhar playstation e joguinhos para se divertirem até que sejam salvos! A Nasa chegou, olha a cavalaria bem a tempo!
A mercadoria-audiência
Uma revista de circulação nacional publicou na capa: "Os 33 mineiros serão mantidos vivos. Será a maior experiência de confinamento em profundidade da história da humanidade". Como até todo jornalistazinho mal (in)formado sabe, manchetes são o cartão de visitas, o convite à leitura. Para garantir isso, entre outras características, as manchetes devem surpreender ou despertar a curiosidade do leitor em potencial. Pois veja que surpreendente! Aquelas 33 criaturas incautas serão mantidas vivas! Isso, sim, é que é surpresa, eu já estava certo de que seriam abandonados para morrer... E que fantástica experiência! Conseguimos 33 voluntários para nosso experimento, vamos saber os efeitos de um confinamento de quatro meses em um espaço de 25 metros quadrados (ou seja, menos de 1 m² por pessoa), de onde não é possível pedir para sair, nem ser votado no paredão, muito menos ganhar R$ 1 milhão.
Se houve manifestações de apoio aos mineiros que não partiram dos próprios familiares, nenhuma linha foi publicada. Assim como nenhuma linha sobre a lógica que conduz ao desprezo pela vida de 33 trabalhadores, primeiro enviados a um local condenado por falta de segurança, segundo por não haver a empresa comunicado o acontecido ou sequer feito alguma tentativa de resgate. Hoje foi a San Esteban. Quantas San Estebans já passaram e quantas estão por vir? Não é o acaso que produz tanta desumanidade.
Pode-se argumentar que, não fosse a presença da mídia, o resgate demoraria muito mais, talvez não acontecesse. É possível. Mas chamo atenção para o fato de que o capital, mesmo quando potencialmente pode sofrer um revés, converte-o em mercadoria. Nesse caso, a mercadoria-audiência da mídia. E sensacionalistas são só os programas policialescos, não é mesmo? Vejamos até onde vai durar tamanha preocupação da heroica mídia com o caso, quando um novo fato surgir...
Fonte: Júlio Arantes (Cepcom-Comulti).
* Texto publicado no Observatório da Imprensa
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